Os Pankararu e a Redução de suas Terras



Os Pankararu e a Redução de suas Terras 

Por: Renato Athias


Dizem os atuais habitantes daquele vale que forma os “Pancararu” do antigo “Curral-dos-Bois”, hoje “Santo Antônio da Glória, na Bahia, os primeiros indígenas que ali estabeleceram aldeamento. Essa tradição me foi transmitida pelo Chefe da Aldeia, o velho Serafim, e por outros caboclos. Em seguida, de acordo ainda com a tradição ali corrente, dois padres vindos, também do lado da Bahia, chegaram ao “Brejo”, e neste construindo uma pequena capela ficaram habitando com os Pancararu. Com estes indígenas de “Curral-dos-Bois reuniram-se povos de outros lugares, não obtive informações seguras. O que simplesmente me informaram foi que, depois daqueles índios chegou ao “Brejo” gente da” Serra Negra”, “Rodelas”, Serra-do-Urubá”, “Águas Belas”, “Colégio” e “Brejo dos Burgos”. Todavia, repito, penso que a reunião de povos pertencentes a grupos tão diversos naquele vale resultou na Missão que existiu em épocas remotas. Além dos Pancararu há na aldeia, reminiscência de índios chamados “ Macarus”, “Gerinpancós”, e “Quaças” ou Ituaças. Estes últimos vindos da Serra-Negra segundo dizem (Oliveira,  1938, p. 159)


O trecho acima foi retirado do artigo de Carlos Estevão de Oliveira escrito em 1937 e publicado em 1938 pelo Boletim do Museu Nacional da UFRJ. Talvez, seja um dos primeiros escritos etnográficos sobre os Pankararu. Mais tarde, Estevão Pinto vai escrever sobre as máscaras Pankararu. Carlos Estevão de Oliveira insiste, mais de uma vez, dizendo que os atuais Pankararu fazem parte, talvez, de uma confederação de povos, provenientes de vários lugares dos arredores da Serra Negra, que se agruparam nessa parte do Rio São Francisco, nas proximidades da Cachoeira de Itaparica, em meados do século XVIII. É nessa condição de grupos confederados que a noção de terra indígena unitária e contínua será elaborada entre eles, sob os parâmetros do que eles vão chamar de “árvore Pankararu”, com o seu “tronco” e suas “ramas”.  

Através de documentos históricos evidencia-se que esses índios vão iniciar um aldeamento em 1700, de acordo com carta régia de 1703. Mais tarde, têm-se notícias que os padres Oratorianos organizaram a missão católica nessa parte do rio desde 1752, com um número significativo de índios provenientes de vários lugares, certamente fugidos e expulsos de algum lugar onde se precisavam das terras para as fazendas de gado. A capela terá o nome de Nossa Senhora da Saúde. Outras notícias afirmam que escravos negros fugidos de fazendas de gado recebem guarita nesse agrupamento indígena que foi denominado de Brejo dos Padres, mas não se tem notícias do tamanho dessa área. A impressão que se tem é de que essa terra era muito grande, pois ia até a margem do Rio São Francisco.  Durante todos esses anos, essa terra desses índios agrupados vem sendo reduzida, vem sendo espoliada. Depois, veio a criação da Freguesia de Tacaratu, que em 1875 será transformada em Vila de Tacaratu. Os praiás dos caboclos do Brejo já abrem a festa de Nossa Senhora da Saúde. 

Cem anos depois da criação do agrupamento do Brejo dos Padres, em 1877, Dom Pedro II, em viagem pelo Rio São Francisco, visita a cidade de Petrolândia que, cem anos mais tarde, estará destinada a ficar embaixo das águas que hoje formam o lago da Hidroelétrica de Itaparica, implicando em uma grande mobilidade de pessoas e transformações fundiárias em toda essa região do submédio Rio São Francisco.

Para nós, hoje seja talvez muito difícil imaginar a vida cotidiana destas pessoas vivendo nestes agrupamentos durante esse período no qual os índios provenientes de muitos lugares vão precisar se refugiar, se esconder, pois por decreto imperial (1875) deixaram de ser índios. Os aldeamentos indígenas passaram por grandes transformações e se tornaram vilas politicamente organizadas. Foram muitos acontecimentos e muitas situações que os índios tiveram que aceitar simplesmente sua nova condição para continuarem a sobreviver. Portanto, as estratégias de sobrevivência física e cultural foi e estão sendo em grande parte o objetivos de resistência desses índios até hoje, sempre incluída nos planejamentos de todas as lideranças.

A terra, nessa nova relação política, foram retiradas dos índios. Os senhores coronéis se apropriam de sesmarias e utilizavam os índios como agricultores, morando de alugado em suas próprias terras. Trabalhando na terra e pagando a meia a algum coronel. Não serão mais chamados pelos nomes indígenas, as diversas línguas não puderam ser desenvolvidas. Eles são proibidos de falar as suas línguas. Eles vão se tornar o que comumente se chama de "Caboclo”. Esta é, portanto a identidade genérica que assumem forçadamente. Eles são os “Caboclos do Brejo dos Padres”.

Quando Carlos Estevão escreveu o texto acima, a unidade étnica Pankararu estava se formando, eles ainda eram apresentados como caboclos. Esse agrupamento de vários índios provenientes de várias lugares, as lideranças mais antigas, como o seu João Tomás, que eu tive a oportunidade conhecer morando na aldeia Macaco, vão denominar de “Pancarú Geripacó Cacalancó Umã Canabrava Tatuxi de Fulô”. Foi um grande processo de negociação para compor o que seriam os Pankararu atuais. Essas lideranças puderam participar dessa longa caminhada de negociações internas, cujas narrativas podemos ainda encontrar na tradição oral e nos versos dos Torés Pankararu. Certamente, o famoso Serafim, “chefe dos Caboclos” como escreveu Carlos Estevão, será sem dúvida um daqueles importantes personagens que incentivará a criação da unidade Pankararu pela sua sobrevivência física e cultural já relatada pela imprensa desde 1938.

Serafim com duas cantadoras, fotografado por Carlos Estevão em 1937 
 Acervo da Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira, Museu do Estado de Pernambuco.


O Estado Novo de Getúlio Vargas vai reconhecer os Pankararu como povo etnicamente diferenciado e os colocará dentro da condição de “silvícolas”, tal como estavam denominados os povos indígenas, na época, na Constituição Federal dos Estados Unidos do Brasil. Introduzindo-os na condição de pessoas necessitando de uma tutela, o papel organizativo do Estado será de criação do Posto Indígena do SPI, já funcionamento em 1940.

Para esses índios, Dom Pedro II quando visitou Petrolândia fez a doação de uma sesmaria, ou seja, de uma terra com "uma légua em quadra", marcada a partir da Igreja construída pelos padres e que ainda está no Brejo, dedicada ao padroeiro Santo Antônio de Lisboa. Esse foi o mais forte argumento para o reconhecimento étnico e para dar o início ao processo de demarcação da terra indígena dos Caboclos do Brejo dos Padres, ou seja, dos Pankararu. Juntamente com esse reconhecimento veio toda uma estrutura e demandas de organização por parte dos agentes indigenistas que atuaram nessa área. Uma légua em quadra será por muito tempo o tamanho da terra única e contínua para os Pankararu, começam a ter esse entendimento entre as principais lideranças. Será um longo processo de negociação de transformação de sua organização social, pois desde 1937 o SPI já vai implantando uma estrutura no local. 


Trechos da reportagem sobre as demandas ao governo federal das Terras Pankararu publicadas no Jornal do Comércio em 1938 (Acervo Coleção Carlos Estevão de Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco)


Na realidade, as lembranças e as histórias orais nos informam que esses índios moravam nas proximidades da margem do Rio do São Francisco. As pedrinhas da Cachoeira de Itaparica estão presentes na vida desses povos, pois vão fazer parte do entendimento do "ser Pankararu", dando os nomes para os Encantados existente em toda área. A cachoeira, lugar mitológico das histórias orais, deixou de existir quando o lago da Hidrelétrica Luiz Gonzaga cobriu toda a área da Cachoeira de Itaparica. As lideranças, desde os anos quarenta, vão organizando o povo em estruturas próprias, tendo o tronco e as ramas como uma grande rede de parentesco que sustenta essa organização política interna dos Pankararu atuais.

O discurso já está montado e organizado. As lideranças do tronco velho saem do Brejo e vão longe, atrás das ramas que estão espalhadas, vão atrás da demarcação de suas terras, vão atrás da oficialização. Escutei essas histórias relatadas por seu João Binga, Seu João Tomás, Dona Maria Chulé, Dona Quitéria, Seu João de Páscoa e muitas outras lideranças, algumas já se foram deste mundo, outros estão ainda nessa mesma luta, desde os tempos em que os Padres Oratorianos agruparam esses índios na margem do São Francisco. Essas histórias são contadas até hoje. Foram muitas as viagens ao Rio de Janeiro, depois Brasília e a muito outros lugares. Muitas pessoas vão se mobilizar para que os Pankararu tenham de fato o que restou das suas terras tradicionais, que agora já tem uma definição em uma demarcação feita pelo SPI, ratificada pela Funai em diversos processos e que todos os Pankararu vão dizer: é um quadrado formado por uma légua de sesmaria que dá 14.294 hectares.

Na realidade, desde o século XVIII que esses índios estão brigando com os agentes da sociedade nacional, fazendeiros e posseiros, e todos indígenas afirmando que essa terra lhes pertence. Olhando a história das fronteiras agropastoris que avançam sobre as terras tradicionais indígenas, a burocracia e os interesses do Estado Brasileiro não vão permitir que essa situação de conflito seja de fato resolvida. A situação atual não é diferente do que foi nesses últimos 317 anos para as populações indígenas da Serra Negra que se encontram espalhadas na região do submédio Rio São Francisco. O conflito atual dos Pankararu com os posseiros pode ter outro nome hoje, mas é o mesmo na essência: se trata da redução das terras indígenas e da intolerância frente à identidade indígena. Essa mesma luta já passa por diferentes gerações de Pankararu. Já falava Carlos Estevão, em 1938, em “...solicitar a interferência do Ministério da Guerra” para “torne efetiva a demarcação” e que os problemas da terra fossem resolvidos. Passaram já 82 anos e o problema continua!